Adriano e o Show da Vida, por Lúcio de Castro.

domingo, 21 de março de 2010



“VIVI NO MONSTRO, E CONHEÇO SUAS ENTRANHAS”.

(José Marti, poeta e revolucionário, ao voltar para Cuba depois de viver 15 anos nos Estados Unidos).

O show vai continuar. Diário. Enquanto Adriano render, que se esprema.
Sigo com as mesmas posições desde o início, tendo que repetir porque o assunto não acaba. Mas em boa companhia, com Eduardo Galeano, Luiz Eduardo Soares e muita gente boa aqui nos comentários. Mesmo diante de novos fatos, que aparecem em overdose todos os dias, sigo mais convicto de cada uma das minhas palavras anteriores.

Na noite deste domingo, 21 de março, ao que parece, mais uma vez Adriano será o centro das atenções no Show da Vida. Afinal, sua vida virou isso mesmo, um show para deleite alheio.
Como já disse e repeti, cometeu erros. Mas a reflexão que aqui proponho, sem pretender ser dono da verdade jamais, é sobre a dimensão do massacre, sobre o que existe de público e crime efetivamente, e sobre a autoridade moral de cada um para publicar.

Talvez esteja aí o ponto central da questão para mim no momento: tem gente poderosa comprovadamente culpada em diversos outros episódios da sociedade brasileira que é aliviada pelos mesmos que comandam o massacre atual e que botam no ar as coisas do negro, favelado, sem amigos no poder. (vejam em meu blog textos anteriores de Eduardo Galeano e Luiz Eduardo Soares).

Afinal, tem coisa muito mais grave apurada, pronta e que não vai ao ar. Muito pior.
E que não me venham com a história de que uma coisa independe da outra, que as coisas de Adriano devem ir ao ar assim mesmo...

Porque pessoas que determinam não poder ir ao ar denúncias que envolvem dinheiro público no esporte, desvio de verbas públicas no esporte, acumulação ilícita de dinheiro por cartolas, não tem autoridade moral para botar no ar coisas que não podem incriminar alguém. Se a decisão é fazer do esporte apenas entretenimento, que se faça apenas entretenimento, e isso não valha para uns e para outros não. Falaremos disso um pouco mais abaixo.

O que está previsto para aparecer no Fantástico vai fazer barulho possivelmente dentro desse show-circo que se estabeleceu. Estardalhaço, respingar em Adriano, e inacreditavelmente talvez até tirá-lo em definitivo da Copa do Mundo.

Mas vale a reflexão. Porque tampouco o que vai aparecer pode incriminá-lo como traficante, associado ao tráfico ou coisa que o valha. Mas nem por isso deixarão de botar no ar, pelo que se sabe até aqui.

Escrevo antes, ainda em cima das informações que tenho até aqui, sobre o que deve ir ao ar, salvo mudança. Na tarde deste sábado, Gilmar Rinaldi, empresário de Adriano esteve na Divisão de Esportes da TV Globo e foi apresentado ao teor das denúncias por executivo da divisão de esportes, acertando o direito de resposta de Adriano, sem ter conseguido evitar a exibição. O resultado da reunião é que deve mesmo ir ao ar, com mais uma entrevista de Adriano.

Vamos aos fatos: pelo que se sabe, Adriano vai aparecer em duas imagens, feitas provavelmente em 2008, quando ainda estava na Itália, em uma de suas visitas à favela onde nasceu, a Vila Cruzeiro. Em uma foto aparece carregando uma metralhadora, posando com o deslumbramento de um garoto criado ali que vê nas armas sinal de poder e status. Quem já foi a uma favela sabe como os garotos ali se deslumbram com portar e posar com uma arma. Foi ali que Adriano foi criado.

A outra foto é com ele fazendo as iniciais da facção que comanda o tráfico ali. Errado? Claro. Ao que se pode saber até aqui, apressados à parte, nada que possa comprovar sua atuação como traficante ou associado com o tráfico.

Na verdade, o que fica claro sobre Adriano, é que faltou malandragem ao malandro, achou que tava lidando com gente confiável, e que as fotos não sairiam dali jamais. Todos seus amigos de infância na favela. Mas não entendeu que não podia confiar em alguns e que sua vida já tinha mudado, não era mais o moleque criado ali. Que a favela é como qualquer lugar da sociedade: tem o bom caráter, o bandido, o trabalhador, o desprovido de caráter que entrega o amigo, o traíra. Em bom português, foi ingênuo, burro mesmo.

O modo como foram obtidas as fotos anula a ideia de apologia ao tráfico, porque no meu entender apologia é feita por alguém que quer disseminar algo publicamente e não em foto roubada. Algo como se comemorasse um gol no Maraca fazendo as tais iniciais. Mas mostra tragicamente que o garoto criado na favela nem foi tão malandro assim. Traído por algum amigo de fé, a foto estará no ar e vai pro mundo todo.

Mas, e as demais reportagens? Alguns aqui conhecem minha trajetória profissional. Nos 4 anos em que trabalhei entre TV Globo e Sportv, tive a honra de conquistar por 3 anos o Prêmio TV Globo de Jornalismo pela melhor matéria do ano da divisão de esportes. O que muito me orgulha pelo respeito à instituição e por muitos dos que estão ali. Afinal, os homens passam e a instituição fica. (como já disse aqui, conheci ali muita gente de imensa coragem, colegas a quem respeito imensamente, que seguem combatendo o bom combate, apurando verdades, mesmo que elas esbarrem em forças ocultas maiores e não sejam publicadas).

Mas nenhum desses prêmios que tanto me orgulham foi conquistado com algumas das matérias de denúncias que apurei e apresentei ao comando da divisão de esportes. Matérias que tiveram veiculação negadas. A partir de certo momento, passei a ter a precaução de enviar tais pautas e resultados de apurações de desvio de dinheiro público no Pan, enriquecimentos ilícitos de cartola, relações suspeitas de cartolas, por e-mail. As respostas vinham também por e-mail.

Bom, o fim da história já sabemos, e sigo aqui na ESPN, agora fazendo algumas dessas matérias proibidas e desempenhando meu ofício em plenitude. Como na reportagem “Cem Anos de Perdão”, que já foi publicada na Revista da ESPN, e é encontrada no blog da revista, aqui no site da ESPN. Outras virão na revista, tv, internet.

E é essa a questão: tem autoridade moral para determinar a veiculação de algo sobre Adriano quem veta a publicação de reportagens, essas sim, envolvendo enriquecimento ilícito de cartola, roubo de dinheiro público, etc. Não é preciso redefinir o conceito de entretenimento de alguns então? Esporte não é entretenimento quando se trata do filho da Vila Cruzeiro, mas é apenas entretenimento quando o assunto é Copa do Mundo, Pan, Olimpíadas, onde só vale o noticiário café com leite, água de bidê?

Sigo firme acreditando, como Eduardo Galeano, que na raiz de tudo vem o preconceito. E agora pior do que isso: na raiz de tudo, estão escolhas que não são legítimas.

Para encerrar, mesmo adicionando calor nesse caldeirão, mas deixando bem claro que não estou falando em gostar de fulano ou sicrano, estou debatendo conceitos. Não tenho intimidade alguma com Ronaldo ou com Adriano. Não quero atacar ou defender um ou outro. Assim como fica demonstrado que denúncias contra cartolas, etc, não valem, mesmo contra alguns atletas também não.

Sei apenas que Adriano seguiu sem renegar as origens, andando com as mesmas pessoas, sem estabelecer rede de relacionamentos que dão proteção de notícias assim. Já Ronaldo nunca mais foi visto em Bento Ribeiro. Estabeleceu imensa rede de relacionamentos e proteção, virou amigo-irmão da alta sociedade, vai pra casa do Luciano Huck, de alguns outros sobrenomudos que apitam na sociedade, na Casa Grande. Como disse essa semana um sociólogo, embranqueceu.

Quando passou pelo episódio dos travestis, que era público, tinha registro em delegacia, acusações fortes, deu uma entrevista em Angra e fim de papo. Ninguém seguiu na história, mesmo tendo tanta coisa a ser apurada. Não sobre a parte privada, fique bem claro. Ele que leve pro hotel quem quiser, porque isso é problema dele, mas sobre a ação policial a apuração parou.

Aquele depoimento em cima da perna no carro no pátio da delegacia, o travesti que depois veio a morrer de AIDS, que logo depois do episódio se calou...Tudo isso é mais um aspecto para o amigo chegar a sua conclusão, antes de encher a mão de pedras e julgar. E lembre-se sempre do Pan, Olimpíadas, Copa... Nada, mesmo que existam comprovações de crimes? Mas Adriano sim? Repito: quem sonega tais apurações e alega que esporte é entretenimento e não página policial, não tem autoridade moral para falar de Adriano.

O brilhante historiador inglês Edward Carr, no clássico “O que é História”, definiu que fatos históricos são como peixes no mar e historiadores são pescadores seletivos, que escolhem os peixes que querem. Alguns executivos da informação na área de esporte são muito mais seletivos do que aqueles pescadores.

Por trás do que sai, do que é notícia e do que segue sendo notícia e é aprofundado e do que não é aprofundado, existe muito mais do que uma foto na Vila Cruzeiro.

Eu e José Marti podemos dizer.

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